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    Fontaínhas: onde o Mundo diz "Wow!"

    23 de maio de 2025

     

    Crônica Décio Barros

     

    "Wow!". É este o som que as pessoas soltam quando veem, pela primeira vez, as Fontaínhas. A aldeia que a National Geographic elegeu como o segundo lugar com a melhor vista do mundo. Está classificado como Património Cultural e Natural Nacional. Sendo um dos grandes atrativos da trilha mais procurada por turistas em Santo Antão.

     

    A ilha de Santo Antão é um paraíso para quem gosta de trekking [caminhada] e do turismo de natureza. Segundo guias de turismo locais, claramente, a trilha de 14,6 km que liga Ponta do Sol a Chã de Igreja - passando por Fontaínhas, Corvo, Formiguinhas, Aranhas e Cruzinha - é a mais procurada por amantes de caminhadas em toda a ilha de Santo Antão. 

     

    Situada, entre montanhas no extremo norte da ilha de Santo Antão. Para quem faz o percurso da cidade de Ponta do Sol até Fontaínhas, o caminho é vertiginoso, serpenteando por entre montanhas e subindo, devagar. Do lado do mar, há precipícios de onde se ouve o som das ondas lá em baixo. É uma caminhada de dificuldade moderada, com pouco mais de 30 minutos, num trajeto de 2,7 km, sempre entre a montanha e o oceano.

     

    E, de repente, surge à nossa frente a aldeia de Fontaínhas, como um presépio suspenso nas montanhas. Encravada ao meio de uma grande montanha, um aglomerado de casas coloridas agarradas à falésia, numa crista inclinada, projetando-se sobre as dobras profundas e os terraços verdejantes do vale.

     

    O percurso até ao ponto em que se vê a aldeia é um verdadeiro momento de suspense. Nada acontece... até que, subitamente, se revela uma paisagem de cortar a respiração. Ninguém fica indiferente: a boca diz "wow!" e as mãos correm aos bolsos para tirar o telemóvel e registar aquela imagem que se torna, inevitavelmente, num cartão postal da visita a este lugar mágico. É o ponto onde os amantes de caminhadas param, não para descansar ou beber água, mas para apreciar a beleza da paisagem, tão deslumbrante quanto encantadora.

     

    Mesmo na minha quinta visita as Fontaínhas, voltei a soltar o célebre "wow!". Desta vez, as casas estavam recém-pintadas e as cores mais vivas destacavam-se no cenário seco e acastanhado com algumas traços esverdeado das montanhas. A visita foi em março. Os guias de turismo com quem me cruzei diziam que a vista é ainda mais impressionante na época das chuvas, quando o colorido das casas contrasta com o manto verde que cobre toda a parede das montanhas.

     

    Há vários anos que faço caminhadas pelos cantos de Cabo Verde (em todas as ilhas, excepto a Santa Luzia) a fazer trilhos e aprecio, profundamente, as três cores predominantes das paisagens ao longo do ano: o verde exuberante das chuvas, o castanho amarelado da vegetação queimada pelo sol escaldante, e o castanho seco onde só se veem pedras e terra. Para mim, há três “Cabo Verdes”, durante o ano.

     

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    Voltando ao meu percurso até Fontaínhas, o relógio marcava pouco depois das 10h. Não tinha pressa, porque, desta vez, vim propositadamente para pernoitar na aldeia e passar 24 horas por ali. Fiquei largos minutos no "miradouro natural", o tal ponto que revela a aldeia em toda a sua glória. Passaram por mim vários turistas, uns em duplas, outros em grupos maiores, de nacionalidades variadas: franceses, austríacos, belgas, suíços, alemães, espanhóis, brasileiros, britânicos. As reações eram sempre as mesmas: um "wow!" e muitos cliques de máquinas fotográficas e telemóveis.

     

    Conversei com alguns guias locais, que me disseram que esse momento já é quase um ritual: o "wow!" seguido da foto obrigatória. Segundo eles, entre 60% a 70% dos turistas que os procuram para fazer trilhos são franceses.

     

    Em 2015, a edição espanhola da revista National Geographic elegeu Fontaínhas como o segundo lugar com a melhor vista do mundo, numa lista com as 10 paisagens mais deslumbrantes do planeta.

     

    Mais recentemente, em agosto de 2024, o Governo de Cabo Verde classificou a Aldeia de Fontaínhas como Património Cultural e Natural Nacional (Portaria n.º 34/2024), destacando as suas riquezas geográfico-naturais e os testemunhos vivos da história, costumes e identidade cabo-verdiana. O texto oficial afirma que a aldeia "constitui uma das melhores vistas do mundo".

     

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    No meu caminho, rumo as Fontaínhas, encontrei um turista austríaco que falava português com sotaque brasileiro. Já o tinha visto no hiace (transporte interurbano) que nos transportou de Porto Novo até Ponta do Sol, sempre a verificar o mapa e aos locais por onde passávamos. Notava-se que era a sua primeira vez por estas bandas. Disse-me que veio a Cabo Verde exclusivamente para conhecer Fontaínhas, e que só pela vista, a viagem já valia a pena.

     

    Como ia pernoitar, fui procurar o meu contacto de alojamento. Sem rede de telemóvel, procurei alguém da aldeia. Após uns 15 minutos, encontrei um habitante que me disse que, infelizmente, muitos moradores abandonaram Fontaínhas. A escola primária já fechou há muito e restam apenas duas crianças, que vão estudar a Ponta do Sol. Levou-me até à casa/loja do senhor Teófilo Delgado, responsável pelo alojamento. O senhor Teófilo, com 94 anos, é o mais velho da aldeia, mas ainda bem "rijo".

     

    A casa onde fiquei alojado situava-se precisamente na ponta da crista, sobre um precipício. Mesmo com vertigens, estava tão fascinado que me esqueci disso. O T1 era confortável e barato (3 mil escudos por dia). Mas eu queria mesmo era andar pela aldeia e conversar com os locais. Do alojamento ouvia-se várias pessoas a conversar e o som de um violão, fui logo atrás.

     

    Ali perto, na loja do Tchu, um jovem que serve refeições e sumos naturais a centenas de turistas/amantes da caminhada que passam diariamente pela aldeia todos os dias. Tchu serve na rua e no terraço, no 2⁰ piso. Preferi o terraço, onde come uma cachupa refogada com ovo e linguiça, acompanhada de uma cerveja Strela gelada. Tchu é o faz de tudo na loja e ainda anima os visitantes com músicas tradicionais no violão.

     

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    Bar Tchu

     

    Com tanto por explorar, não queria perder tempo. Ainda não conhecia o fundo da ribeira nem a praia escondida lá em baixo, fica para uma próxima visita.

     

    Decidi ir até à aldeia do Corvo, a cerca de 2 km. Pelo caminho, há que subir e descer uma montanha. No topo, a meio caminho, fica a espetacular Selada de Corvo: de um lado, vê-se Fontaínhas de uma perspetiva diferente, com parte da cidade de Ponta do Sol (zona do Cais de Pesca Boca de Pistola) no horizonte; do outro, o Corvo no fundo da ribeira e um caminho vicinal serpenteante até à aldeia, e ao fundo enormes montanhas ao fundo e o mar a bater no sopé, adicionando mais uma cor a paisagem - o branco das ondas. 

     

    Todos os caminheiros param ali, na Selada de Corvo, para comer algo, apreciar as vistas e, claro, tirar fotos. Eu fiquei por cerca de uma hora e meia, a conversar com turistas e, sobretudo, guias cabo-verdianos para saber dos lugares, das vivências, das gentes da ilha. Afinal, o objetivo do nosso projeto [www.instagram.com/cvcultural] é incentivar os cabo-verdianos a viajarem e conhecerem o seu próprio país.

     

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    Selada de Corvo

     

    Foi ali que me chamou a atenção uma turista francesa, invisual, com cerca de 70 anos, que fazia com alegria a desafiante trilha de 14,6 km com um grupo. Ah, para aqui também vem os habitantes de Corvo, "apanhar" o sinal da rede móvel.

     

    Desci até ao Corvo para uma visita breve. Prometi voltar com mais tempo. Já era meio da tarde. Tinha de regressar a Fontaínhas e, depois, a Ponta do Sol para ver o famoso pôr-do-sol, na última cidade da África por onde o sol passa. 

     

    O meu ritmo é sempre pausado. Paro, observo, converso. Pelo caminho, encontrei um professor residente em Ponta do Sol que fazia o seu jogging diário até Fontaínhas. Disse que só as paisagens em si, durante o percurso já é terapêutico. Mais à frente, vi trabalhadores na reabilitação da estrada estreita que liga a aldeia à cidade, tão estreita que os condutores combinam horários para evitar cruzamentos arriscados. Eu prefiro ir a pé.

     

    Ver aqueles trabalhadores a partir pedras e a erguer muros de proteção fez-me lembrar as antigas obras das FAIMO (Frentes de Alta Intensidade de Mão de Obra), programa governamental que marcaram gerações em Cabo Verde, no pós independência até inicio do ano 2000.

     

    Cheguei a Ponta do Sol para ver mágico pôr-do-sol e depois regressei as Fontaínhas pelas 19h. Deixo aqui o link do artigo A última cidade de África a ver o sol tem um dos pores do sol mais deslumbrantes de Cabo Verde

     

    No caminho de regresso as Fontaínhas, já no lusco-fusco, encontrei uma jovem da aldeia, boa companhia, que aproveitei para saber mais sobre a aldeia. Ela me falou da sua infância ali, das brincadeiras e dos piqueniques à beira-mar, dos banhos nos tanques, da contradança que antes era marca forte da aldeia, trazida em tempos por franceses, e agora está a perder força. Lá em baixo, vimos uma pequena luz a mover-se entre os rochedos e o mar. "É o meu marido", disse ela. “Como sabes?”, perguntei. “É dos poucos que ainda pesca junto às pedras da aldeia.” Ela explicou que a aldeia é dividida em duas zonas: Lombo e Kel Banda.

     

    Já na aldeia, ela seguiu para Lombo e eu fui para Kel Banda, onde as casas parecem penduradas na falésia. Às 20h, as casas da aldeia já estavam de portas e janelas fechadas. A aldeia estava silenciosa, interrompido apenas por sons da natureza: o vento, os grilos, os sapos, o mar. Felizmente, já tinha feito uma refeição em Ponta do Sol.

     

    Sentado na varanda da última casa da aldeia, sobre o precipício, ouvi uns assobios em melodias. Era o senhor Simão. Fui ter com ele, sentado na soleira da porta. Conversámos por horas. Simão também foi emigrante, diz ter trabalhado apenas um mês, num barco grego, mas preferiu regressar à terra e cultivar, porque ali há muita água. Falou dos tempos em que a aldeia tinha muitos jovens, dos jogos de futebol entre Lombo e Kel Banda...

     

    No dia seguinte, acordei às 10h, ainda cansado do Carnaval do Mindelo, tive uma semana a trabalhar, com poucas horas de sono. Fica aqui o link da crônica Oito dias entre a folia e a cultura: um percurso pelo Carnaval e além

     

    A aldeia estava quase deserta: os agricultores no campo, os comerciantes tinham ido a cidade fazer as compras. Fui procurar o senhor Jorge, um conversador  nato e de simpatia incrível, falou das suas vivências. Residiu décadas na Grécia, mas grande parte desse tempo a trabalhar em navios e agora descansa na terra onde nasceu. Com um gorro do AEK (equipa de futebol grego) na cabeça, comando da televisão na mão vai mudando de canal, e vai acompanhando o país e o mundo, via parabólica. A conversa estava tão cativante, cerca de duas horas à conversa, passaram num lapso. Senhor Jorge, navegou por todos os continentes, do extremo Oriente, no Japão às grandes cidades portuárias da Ásia, África, Europa, América do Sul e do Norte. Mas é em Fontaínhas que quer estar. Tem um mar de estórias para contar.

     

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    Uma curiosidade: todos as pessoas com quem conversei dizem "nasci e cresci" em Fontaínhas. Há um enorme sentimento de pertença neste lugar.

     

    Ainda hei de voltar. Para continuar a admirar a aldeia e voltar a dizer aquele "wow!", não o "wow!" frenético do saudoso músico Jorge Neto, mas o "wow!" da mais pura fascinação.