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    Djoca, o fiel devoto

    Crónica. "Nhu Sior do Mundu" Festa, fé e morabeza em São Salvador do Mundo

    5 de maio de 2025

    A celebração de Nossa Senhora do Mundo, em São Salvador do Mundo, popularmente conhecida por Nhu Sior do Mundu, movimenta todo o concelho. Esta festa religiosa tem o seu ponto alto com a Missa Grande e procissão, no 3.º Domingo do Tempo Pascal. Este ano, aconteceu no domingo, 4 de maio.

     

    É uma tradição com muitos anos de história, que nos últimos tempos passou a incluir um festival de música, reunindo grandes nomes nacionais e talentos locais. Num município com géneros como o funaná e o batuque bem enraizados, o festival deste ano foi recheado de artistas. Na sexta-feira, 2 de maio, o palco recebeu nomes como Elji Beatzkilla, Zé Espanhol Trakinuz, MC Acondize, Milito Freire, Ana Mileide, Milene Gomes e Willy Semedo. E diga-se de passagem: o batuque mostrou a força que já conquistou. Ana Mileide e Milene Gomes, dois fenómenos do género, nomeadas para os Cabo Verde Music Awards (CVMA), arrancaram ovações.

     

    Mas esta crónica não é sobre o festival de música. Queremos falar da nossa vivência no Nhu Sior do Mundu, deste ano, fora do circuito do festival. Fomos aos Picos, à Achada Igreja, para o famoso festa e bailes “na bespa” (de véspera, em português). Estas festas populares no interior da ilha de Santiago já conheceram dias de maior procura, antes da "febre" dos festivais promovidos pelas câmaras municipais, nos últimos 20 anos.

     

    Ao início da noite de sábado, partimos da cidade da Praia em direção a Achada Igreja, que, desde 2010 por decreto, é oficialmente cidade e o principal centro do município. São 37 km, cerca de 45 minutos de estrada. Pelo caminho, vários grupos de jovens, todos basofos, aguardavam animados os hiaces, transportes públicos interurbanos, para seguirem para os bailes que se organizam nos terraços, à moda antiga. Para mim, estes bailes são autênticas viagens no tempo. A última vez que tinha ido foi antes da pandemia de covid-19, quando a família de Belo Freire,  exímio tocador de gaita e mestre do funaná frenético, organizava bailes pagos. O famoso Cotxi Pó.

     

    Este ano, a festa manteve a mesma essência e muita morabeza, com bailes pagos (os antigos festas cinquentinhas), ruas movimentadas, bebidas, assados, muitos quiosques e muita música. Antigamente, a festa dos Picos nem sempre era sinónimo de boa convivência nos bailes. Havia macho bedjo ta cabá ku badjo, "galos" a competirem pela atenção das moças. Talvez por isso, ainda hoje, quando, na comunicação social, se pergunta como correu a festa, a resposta costuma ser: “Correu bem, felizmente sem desacatos, o pessoal portou-se bem.”

     

    “Galos de festa” diferente de Rasta Nguka, descrita pelo historiador Arlindo Mendes, no livro "Prática de Rasta Nguka na ilha de Santiago" [que recomendo uma leitura], em que os rapazes conquistavam através do trabalho agrícola, numa tradição com ligação entre esforço e casamento.

     

    Lembrei-me da música “Jornada de um Badiu”, de Norberto Tavares: “...Nbem socado mas um purba festa”. Eu, na paz, me diverti até às tantas, e fui repousar para continuar no dia seguinte. Alguns jovens, no entanto, proclamavam: “Cá ten dormida, é manxêda!” (não dormimos, a festa continua).

     

    No domingo, dia da Missa Grande, a cidade enche-se de gente trajada a rigor. Todos os caminhos iam dar à Igreja Matriz. Devotos de todo o concelho, de outras partes da ilha e emigrantes, sobretudo de Portugal e França, vieram celebrar com orgulho a sua festa di zona.

     

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    Durante a missa, a imagem do santo é colocada junto ao altar. No final, os fiéis aproximam-se para "conectar" com o santo, tocam-no com carinho, e hoje, claro, posam para fotografias e selfies. Algumas pessoas, sem saber manejar, abrem o aplicativo da câmera fotográfica para registar o momento com familiares, no entanto ao tentar fazer fotos, esquecem de clicar no botão a efetuar a foto. Tive de intervir e ajudar as pessoas e aproveitei para proferir a famosa frase “ok, não se mexe!” do saudoso fotografo Fausto, que era presença notável nestas festas populares.

     

    É fascinante essa fé do povo. Este ano, na festa de Nhu Sior do Mundu, aconteceu um momento curioso: as batucadeiras Ana Mileide e Milene Gomes marcaram presença na missa e, no final, estavam junto à imagem do santo. A popularidade que ambas granjeiam é tão grande que centenas de pessoas, de crianças a jovens, adultos e idosos, faziam fila para tirar fotos com elas. O batuku está tão em alta que estas "estrelas" do género quase "concorriam" com a própria imagem do santo, em fotos com fãs/devotos.

    Ana Mileide e Milene Gomes estão confirmados no "Festival de Música 13 Maio", neste fim-de-semana, na cidade de Assomada. 

     

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    Batucadeiras Ana Mileide e Milene Gomes 

     

    À saída da missa, reina a morabeza. Basta um olhar ou duas palavras e alguém convida: “Bai almoço ku nós”. Mesmo sem ter família no interior de Santiago, sou entusiasta dos pratos típicos das festas de santo. Não faltou feijão pedra, xérem, guisado de carne com mandioca, massa de milho, tudo cozinhado em panelões a lenha, no terreiro. Gosto muito!

     

    Comi que se farta. O protocolo “obriga” a aceitar, pois recusar é má educação.  O "protocolo" também inclui comer pelo menos um pouco em cada casa, porque os convites são muitos e as casas para visitar são inúmeras. Confesso: por esses pratos tradicionais, tenho sempre muito apetite.

    E ainda antes de a missa terminar, já estava intimado a comer dois pratos de feijão com toucinho, xérem e guisado com mandioca. Estava eu procurando um ponto para levantar o drone e captar imagens do icónico e símbolo do município, o Monte Nguli Lança (ou Monte Manhanga, como os locais também o designam - acho que é a localidade com nome mais exótico, mais cool de Cabo Verde). Acabei no terreiro de uma casa com vista privilegiada. Bastou o som do drone para os moradores aparecerem. Bastou duas palavras trocadas e já estava convidado para o almoço. Eu, rapaz di Praia, cá tá nega! Recusar seria ofensa! Apesar de já ter comido dois pratos cheios, ainda insistiram para eu comer mais. Mas fiz-me de difícil. Fiz um bocadinho de fita. (kkkkkkk).

     

    Voltei à missa. Não para assistir, mas para sentir o pulsar das nossas gentes, os trajes, os rostos, a alegria de mais um dia de santo padroeiro. E ouvi várias vezes: “Não vais embora sem passar lá em casa”. Tive de aceitar os convites de quem vivia junto à estrada, pois em São Salvado do Mundo, muitas casas ficam em zonas altas e dispersas, lá cutelo, exigindo caminhadas longas. Na altura de regressar, com um bom farto, já previa o caminho volta seria mais “distante”.

     

    Nestas missas em honra aos santos padroeiros, por todos os cantos da ilha de Santiago, há sempre alguém cuja presença é garantida. Um verdadeiro devoto da fé católica. Djoca, residente na cidade da Praia, é figura bem conhecida. Senhor de amizade fácil, está sempre com um sorriso aberto e uma alma cheia de positividade. “Amigo dos amigos”, é assim que gosta de se autodenominar. No final da missa, trocámos cumprimentos, dois dedos de conversa e, claro, um selfie. Djoca, sempre basofo, adora uma boa fotografia. Tal como eu, que também gosto destas festas, acho que está na hora de pedi-lo o calendário completo das festas de santo na ilha de Santiago.  

     

    Já satisfeito, era hora de regressar à Praia. Tinha compromisso num evento cultural, parte do Kontornu – Festival Internacional de Dança e Artes Performativas de Cabo Verde. Mas ainda queria fazer mais umas imagens de drone. Pedi a um senhor para subir ao terraço. Trabalho feito. Quando descia, novo convite: mais uma mesa farta, um quintal cheio de pessoas, de muita alegria e convívio. Conversei com gente que conheci há minutos, mas parecia que já os conhecia há uma vida. É a morabeza crioula. É assim em São Salvador do Mundo. É assim em toda a ilha de Santiago.

     

    Nhu Sior do Mundu, até para o ano.

     

     

     

    Décio Barros